Dona Elsa era uma alemoa alta e muito magra. Trazia na cara duas bolitas azuis no lugar dos olhos e elas quase que pulavam para fora toda vez que ela pensava na morte. Dona Elsa tinha muito medo de morrer. Bobagem. Dona Elsa tinha muita vontade de viver. “Vive, menina, vive! Se não tu morres sem nem saber o que foi essa vida que acabou de acabar.”
Dona Elsa só bebia água, comia todos os tipos de verduras e se exercitava regularmente. Não fumava, nunca usara nenhuma droga na vida (a vida havia sido a droga, dizia) e preenchia uma revistinha de palavras-cruzadas por dia “para manter o cérebro ativo”. Ela dormia o sono dos justos apenas para acordar todos os dias de supetão como quem sonha com o inferno, beijar o travesseiro e dizer baixinho: céus, ainda bem que eu não morri esta noite.
Dona Elsa tinha um sorriso de vovó, falava como uma vovó e era calma como uma vovó, a não ser quando era acometida pelo medo súbito de morrer e gritava: é agora! “Eu sinto que é agora, por favor, quero mais tempo, por favor, eu nem vivi ainda!” Dona Elsa tinha noventa e um anos.
Uma vez, contei de Dona Elsa a um amigo que entende muito sobre o pouco que sabe. Ele riu, achou graça do desespero dela. Brincou. “Noventa e um anos não foram o suficiente? Qual o número exato que essa senhora deseja, então?”. Então, expliquei que essa senhora se enquadra no muito que ele pouco ou nada entende. Meu amigo não conheceu a Dona Elsa como eu conheci, não viu o desespero e a delicadeza quando ela me chamava de menininha bobinha e afagava meus cabelos. “Menininha bobinha, não vais gastar a tua vida sem viver. A morte vem, sempre vem e vem para todo mundo. É a vida que se escorrega entre nós e que quase ninguém captura.”
Dona Elsa desperdiçou noventa e um anos, diz ela que não viveu um sequer. Talvez tenha vivido a infância, mas eu é que teimo em achar que só se vive de verdade no tempo em que a gente ainda não começou a ter tantas dúvidas sobre o que é a vida. Depois disso, a gente não vive mais. Só tolera a existência.
Dona Elsa foi tudo antes de ser Dona Elsa. Foi menina, foi filha, foi irmã, foi amiga, foi aluna, foi mulher, foi esposa, foi mãe, foi avó, foi bisavó. Nunca foi Dona Elsa, e acho que é por isso que fico insistindo em chamá-la pelo nome que ela não exerceu. Dona Elsa, Dona Elsa, Dona Elsa.
Eu gostava de conversar com ela ainda que tivéssemos conversas esparsas. Ela andava sempre muito preocupada em beber bastante água, comer direito, dormir direito, fazer palavras cruzadas e um ou outro exercício que ela podia praticar no corredor do hospital. Por, no mínimo, vinte minutos diários, ela dava voltas e voltas no corredor. Depois chegava no quarto toda suada, me olhava e dizia: menininha bobinha, desperdiçando a juventude das pernocas nessa cama porque não quer ter pernas, não quer ter cama, não quer ter nada.
Nessas trocas, a gente se chocava com nossos opostos. Ela, aos noventa e um anos, buscando pernanecer saudável para viver mais um pouco. Eu, aos dezesseis, já querendo ir embora. No fundo, eu invejava os medos súbitos de Dona Elsa. Ela tinha tanta certeza que ia morrer durante esses ataques que me parecia injusto que nós duas não pudéssemos trocar de lugar. Ela se desesperava por achar que ia morrer e eu me desesperava por achar que ainda demoraria muito para chegar a minha vez.
Dona Elsa se enlouquecia comigo. Às vezes, ela pulava na minha cama com agilidade admirável e gritava “vive, menina, vive!”, e quando o enfermeio chegava, assustado com os gritos, ela explicava o plano: era terapia de choque. Em um desses episódios, o enfermeiro Jairo brincou que a Dona Elsa ia curar todo mundo ali dentro só na insistência. Dona Elsa ficou chateada. Não precisa curar o que não tem cura, eu só quero que a menina ao menos viva a ferida. Aí foi a vez do enfermeiro Jairo ficar chateado, porque “todos podem se curar” e não lembro mais o quê, e foi embora emburrado, e Dona Elsa pulou de volta na minha cama e veio me contar do que chamava de sua vida-morta.
Para Dona Elsa, o pior que veio a lhe acontecer foi ser mulher. Porque ser mulher sempre nos implica esse dever de ser mulher de alguém, ela dizia, antes de ser nossa. Dona Elsa serviu e serviu e serviu. Tolerou o marido que não amava - e que muito menos a amava -, criou os filhos, cuidou dos netos, viu o nascimento dos bisnetos, até que começou a dar problemas.
Dona Elsa encontrava um rosto enrugado no espelho e não lembrava do aparecimento das rugas, não sabia o que tinha acontecido entre uma e outra linha da testa. Conhecia tão bem o marido, os filhos, os netos e bisnetos que estranhava a si mesma. Dona Elsa odiou a estranha no espelho, gritou com a estranha no espelho e quando a estranha gritou de volta (audácia!), Dona Elsa deu um murro no espelho e pronto: veio parar num hospital dividindo o quarto com uma adolescente fazendo birra.
Quando a família vinha visitá-la, eu me contorcia. Perguntavam se ela estava dando problemas, se andava tomando os remédios, se estava se sentindo melhor e quando poderia voltar para casa. Ela dizia que nunca havia dado problema nenhum, os outros que jogavam seus problemas em cima dela. Eles diziam que ela deixasse de rancores, que não estava mais na idade de guardar mágoas. E ela mandava todos embora aos gritos: eu sei que estou morrendo, e por isso mesmo quero viver até morrer, quero guardar todas as mágoas que eu tive que deixar de lado para guardar as de vocês, agora peguem todas de volta e enfiem bem fundo! Dona Elsa nunca chegou a especificar onde deviam enfiar as mágoas porque sempre foi muito elegante.
Foi mais ou menos quando eu comecei a confiar mais na vida e ter mais paciência com a morte que Dona Elsa cedeu à aflição. Andava pelos corredores tateando as paredes - “não sei quando vou tocá-las pela última vez” -, beijava o rosto dos enfermeiros, chorava a cada escurecer de céu e passava longos minutos no banho. Menininha bobinha, já paraste para sentir a sensação de sentir? Dona Elsa buscava sentir as paredes e as pessoas e a água caindo no corpo e a comida e bebida, e eu soube que se desesperava quando ela traiu a dieta ao despejar um pacotinho inteiro de açúcar no café pela manhã. De amarga já basto eu.
Pouco a pouco, Dona Elsa quis sentir cada vez mais. Uma vez, chegou a despejar café quente sobre a pele. Dava cabeçadas na parede do corredor, começava brigas louca para perder só para apanhar de alguém. Se sinto dor é porque ainda sinto, ela dizia. Se apegava às pequenas dores como atestado de permanência e um dia a surpreendi no banheiro arrancando os próprios cabelos, fio a fio.
A família brigava mais com ela e ela com a família. Uma vez, Dona Elsa veio me contar que o filho a chamou de “velha louca”. Me disse que era para eu aproveitar enquanto ainda era só louca e não velha também. “Eles sempre vão nos chamar de loucas, isso é a coisa mais normal. Acho que só mulheres chamam outras mulheres de mulheres. Para os homens, existem os homens e as loucas. Velha vem depois, quando a gente fica caída demais para ser minimamente interessante. Velha é a data de validade da louca.”
Em uma noite fria, pude escutar Dona Elsa batendo os dentes na cama ao lado. Naquela época, eu não dormia. Aproveitava as noites para conversas particulares com minha solidão. Quando gritos de outros quartos atrapalhavam, eu espiava a janela e cantarolava Pro Dia Nascer Feliz. Dona Elsa nunca escutava, afinal, dormia o sono dos justos. Naquela noite, batucava a melodia nos dentes.
Me aproximei da cama dela e encontrei Dona Elsa completamente nua tremendo de exposição ao frio gaúcho. Tremia como uma vara e lembro de pensar que, talvez, estivesse, pela primeira vez, certa de que ia morrer. E eu não queria que Dona Elsa morresse de frio. Juntei as cobertas jogadas no chão e cobri o corpo alto e muito magro. Pensei em meus pés quentes por causa do par de meias azuis que havia ganhado de minha mãe na visita daquele dia. Cantarolando, arranquei minhas meias e calcei nos pés dela. Cantarolando, caminhei até a sala da enfermagem e avisei: Dona Elsa vai morrer de hipotermia.
Foi um corre-corre madrugada a dentro, gente de branco erguendo o corpo branco de Dona Elsa, metendo-o em uma cadeira de rodas e correndo com ele para fora do corredor branco rumo a outro corredor branco. Segui cantarolando porque era uma gritaria. Naquela manhã, despejei um pacotinho inteiro de açúcar no meu café. A notícia se espalhou rapidamente: a velha que se matou de frio e a menina que virou a madrugada cantarolando. Ambas eram loucas, eles disseram.
Depois do almoço, os enfermeiros abriram as portas brancas que dividiam dois corredores brancos e de lá vi chegando uma alemoa alta e muito magra e que dava risada. Dona Elsa vinha com a tranquilidade de quem já morreu e não teme mais a vida. Com semblante alegre, me contou que estava certa de que morreria naquela madrugada e por isso não quis dormir. Queria encarar a morte de olhos bem abertos. Achou que passar frio seria uma boa alternativa para não adormecer, então esperou uma distração minha e se pelou toda. Engasgou numa risada. “Lembro de tirar a roupa e lembro que o frio doeu, aí lembro de estar em uma cadeira de rodas, lembro de uma gritaria e lembro de um murmúrio cantarolando que estamos, meu bem, por um triz. Aí sim, tive a certeza de que estava morrendo.”
Lembro de rir até a barriga doer - nessa época, nunca lembrava de rir - e prometi não cantar nunca mais. A coitada devia ter levado um susto mesmo. Dona Elsa afagou meus cabelos e apontou para os próprios pés.
“Tenho certeza de que não morri esta noite porque usava este par de meias azuis. É importante manter os pés quentes. Mas tu sabes disso, não sabes?
Menininha espertinha”.